segunda-feira, 22 de março de 2010

Mesa farta

Não lembro o nome. Perguntei, mas não lembro. Guardei na cabeça apenas o sorriso. Todos os dentes na boca, nem todos dele. Gengiva marcada, castigada também a pele do rosto. Aparência mais velha que a realidade, dura, curtida sob o sol.
Passou a maior parte da vida na água. Dela tirou o sustento, assim como o avô, o pai , os vinte irmãos...
- A mariscada está ótima, quer??
Em algum ponto da vida mudou o rumo. Ainda tira da água o sustento, agora mais colorido, saboroso, cheio de aromas.
Na parte de baixo da casa montou um pequeno restaurante. Cresceu e já abriu mais um andar. É simples, bem simples. Extremamente simpático e aconchegante, como tantos outros ali na margem de um dos maiores manguezais urbanos do mundo e incrustados na pobreza.
Servem aqueles que vêm do outro lado da cidade, cortando ruas da periferia ou de lancha.
Mesa farta, ainda que mal distribuída...

sexta-feira, 19 de março de 2010

O peixe morre pela boca!!

O dia não havia chegado quando entrei na estrada. Escuro ainda. Curioso como a vida nos traz simbolismos. Numa noite escura me sentia já há algum tempo, tateando, mas sem enxergar os passos.
Verdade que algumas pessoas tentaram me guiar, me ajudar a encontrar o caminho. Outras, por mais que eu pedisse, simplesmente viraram-me as costas, roubaram de mim a fé, única e exclusiva, no ser humano.
Chovia...a cada vez que o limpador passava sobre o pára-brisa do carro novas figuras se formavam para no instante seguinte se desmancharem. O pensamento ia e vinha, ia e vinha...sem ordem definida, sem sentido. Os olhos grudados na estrada, a cabeça perdida no tempo. Quanta coisa havia se passado no último ano, quantas palavras não ditas, quantas ditas sem sinceridade.
Certa vez escutei de alguém que mais importante que as palavras eram as atitudes. Nunca consegui entender bem isso, apenas agora. E só com palavras consigo definir quem separa uma coisa da outra, quem não faz o que diz, ou faz o que não diz: mau caráter!
Olhe ao seu redor, com certeza um deles está aí. Às vezes levamos algum tempo para perceber, mas ele vai dar as caras, ah vai!
Que tal algumas dicas. É o tipo de pessoa que está ao seu lado quando tudo vai bem, mas quando não, faz as coisas ficarem ainda piores...ah, quando questionado sobre atitudes diz sempre que mudou, que passou por uma fase...mente em pequenas coisas, simples, banais e tenta te convencer que naquele caso não valia dizer a verdade, pouca coisa por nada, sabe?!
Imagine que um amigo ou o seu pai tenha pedido para tomar conta de algo, um peixe, por exemplo, enquanto ele estiver fora. A pessoa assume o compromisso, mas esquece sempre de alimentar o bichinho de estimação. Resultado: ele morre.
A pessoa faz o que??? Diz que deu a louca no peixe e ele resolveu pular do aquário...Mas tem um detalhe: o mau caráter é tão convincente que você até imagina que o peixe deveria estar estressado, cansado de água, enfim...é faz sentido, por que não?
O limpador passa mais um vez...sigo viagem!

sábado, 6 de março de 2010

Quem somos?

Ela jogou uma balde de água sobre mim...
- Isso é pra você se limpar, sua negrinha suja.
O relato me foi contado por uma produtora angolana com quem tive o prazer de trabalhar. A humilhação sofrida por ela não foi causada por um branco qualquer, o que já seria absolutamente absurdo, hipócrita, canalha, porco...o escárnio veio de um outro negro, mulato como na verdade a vizinha se considerava.
Por incrível que pareça o racismo em Angola está mais presente do que em muitos países de maioria branca. De maneira simplista, isso tem relação com a colonização e o processo de independência. Em oposição ao domínio branco dos portugueses, o movimento nacionalista resgatou as raízes negras e valorizou as diferenças de pele.
Fugidos, os portugueses deixaram para trás muitos filhos bastardos, mulatos, que também passaram a perseguir e a serem perseguidos...uma guerra que se estende agora no período de paz.

Entrar pode

Sempre achei que supermercados dizem muito sobre um povo. Pode parecer loucura, mas quando estou fora do meu país gosto de visitá-los. Somos movidos a consumo, ou não?
Em Luanda fui a dois deles. Um é uma rede internacional, com a cara dos estrangeiros que lá vivem. Nos corredores, sempre muito iluminados, esbarramos mais em brancos que em negros. Os preços são altos e quase a totalidade dos produtos importados. O país, que vive um processo de reconstrução nacional depois de longos anos de guerra, pouco produz, e quando o faz, raramente consegue escoar a produção de verduras e legumes, por exemplo, para os centros urbanos. Angola já foi sim um grande produtor de alimentos, mas as lavouras e as estradas foram completamente arrasadas.
O outro supermercado é uma rede nacional. Até 2002, se não estou enganado, compravam ali os camaradas do partido, quando o país rezava pela cartilha do comunismo. O povo? Ah, esse não podia entrar...
Com adoção do sistema de livre mercado, as portas se abriram para todos. Entrar já podiam...comprar era uma outra questão. Faltava dinheiro e ainda falta para a maioria absoluta da população.
Para eles, entre o comunismo e o consumismo, resta comer com os olhos...

Beijo, me liga!

Cheguei ao aeroporto pouco mais de sete horas para fazer o check in. A fila era pequena, mas nem com isso precisei me preocupar. Um funcionário da empresa se encarregou de todo o trâmite. Entregou meu passaporte, escolheu o assento e despachou a bagagem...fiquei surpreso com a eficiência e a rapidez, algo fora do comum em Luanda.
Depois de quase dois meses você começa a se acostumar com a burocracia. Ela está incrustada em tudo, nada é fácil, nada é simples. O aparelho do estado, construído ao longo dos últimos 30 anos, faz da dificuldade o alicerce para se manter de pé. É a forma de ter o controle absoluto de tudo o que acontece, inclusive da informação.
Imagine que você pretenda fazer uma reportagem sobre os parques nacionais de Angola, um assunto aparentemente de pouca controvérsia, certo? Não lá...
O primeiro passo é descobrir a que Ministério o tema está ligado. Depois é preciso pedir autorização para ter informações como, por exemplo, quantos parques há, qual o tamanho deles, que tipo de fauna e flora encontramos e por aí afora.
O destinatário envia então uma resposta dizendo que recebeu o pedido e vai despachá-lo para a pessoa apta a fornecer os dados. Isso pode levar alguns dias, não raro semanas. Ah, não imagine que essa negociação é feita por e-mail, eles não confiam em plataformas eletrônicas, nem tão pouco em telefones. Só olho no olho...
Daí minha surpresa com o que se passou no aeroporto. Nem ao balcão da companhia eu fui, o funcionário não conferiu se era eu mesmo que iria embarcar com aquele passaporte. Sabe aquele bordão “cara crachá, cara crachá”? Nada, absolutamente nada...
A questão é que o sistema que cria dificuldades inúteis, também cria as “facilidades”, conhecidas por nós como propina, por eles como gasosa. Os funcionários das companhias aéreas trocam a eficiência por cartões de celulares pré-pagos. Simples assim...

terça-feira, 2 de março de 2010

Um lugar qualquer...

Ele está no meio de nós. Largado, jogado, depositado…com todas as nuances, mesmo que sutis, que tais palavras carregam.
Nos misturamos a ele a ponto de perder a noção de quem primeiro ocupou aquele espaço. Convivemos literalmente, ainda que reclamemos por vezes a presença do outro. É raro admitirmos que se ali está é porque ali o deixamos…
E olha que ele todos os dias se faz notar. O cheiro forte nos invade as narinas, nos revira o estômago, nos enche a cabeça de imagens, nos impregna o corpo.
Espaços já não há, pelo menos no sentido abstrato do que é meu e do que é de todos. Nossos caminhos se cruzam, e seguimos desviando de obstáculos que nós mesmo colocamos.
Onde vamos parar? Na próxima montanha de lixo em uma esquina qualquer de Luanda...

segunda-feira, 1 de março de 2010

Espera...

Cedo ainda…o sol não apareceu com a força de sempre, mas vai dar as caras ao longo do dia. Abafado como ontem, como amanhã.
No sábado Luanda segue o ritmo de tantos outros lugares no mundo, mais calma, menos caótica. Da varanda do prédio da empresa ouço o burburinho da rua. Estou no centro da cidade. Os edifícios ao redor são antigos e se beleza tiveram há muito se perdeu. Antenas parabólicas penduradas na fachada, aparelhos de ar condicionado, roupas a secar nos varais esticados para fora…nos telhados é possível avistar as caixas d´água, azuis, verdes.
De um canto a outro erguem-se novas construções. A minha frente, mais ou menos a uns quinhentos metros, há uma obra inacabada. Não sei há quanto tempo, mas há tempo suficiente para já se ter perdido a referência. Uma carcaça de 12 andares, sem acabamento, deixando a mostra os blocos vermelhos…salpicados de pontos coloridos.
Roupas… roupas sim, de uma gente que invadiu a obra. A realidade concreta de quem espera,espera,espera por dias melhores…